Na trilha do documentário musical – CULTURA E MERCADO

 Enviado por  •  julho 9, 2015 •

Está acontecendo nesta semana em São Paulo (SP), e segue para Salvador (BA) de 14 a 19 de julho, a 7ª edição do In-Edit – Festival Internacional de Documentários Musicais. Criado em Barcelona, na Espanha, em 2003, o evento já chegou a diversos países, como Colômbia, Chile, Grécia, México, Argentina e Alemanha.

Neste ano, a edição brasileira do festival recebeu 90 filmes, dos quais 59 foram selecionados para compor a programação. O país é o único de todos onde o evento acontece que recebe também curtas-metragens. Segundo Marcelo Andrade, diretor do In-Edit Brasil, aqui há um número maior de filmes na programação e a variedade de estilos musicais e linguagens cinematográfica é mais ampla. “Não sei dizer se é uma questão de curadoria, de inventividade, de variedade musical, talento. Só sei que a seleção da edição brasileira, em geral, é mais rica que a dos outros países que atualmente compõem a rede. Isso é visível.”

Nos últimos 10 anos, o Brasil teve um salto na quantidade de documentários – não necessariamente musicais – produzidos. De acordo com dados da Ancine, passamos de 15 filmes por ano em 2004 para 36 em 2014, com um pico de 50 em 2013. Fazendo uma comparação com outros países, Andrade considera que a tarefa de realizar um documentário lá fora é tão ou mais difícil do que aqui. Isso porque, com as leis de incentivo, os produtores brasileiros podem lançar um filme financiado através dos programas da Ancine ou das leis estaduais de captação via ICMS, e o título vai para o mercado sem a obrigatoriedade de conseguir mais recursos com bilheteria. O problema está em conseguir esse patrocínio, comum a qualquer cineasta ou produtor de qualquer nacionalidade.

“Pelo mundo, os produtores acabam procurando sócios capitalistas que se tornam coproprietários da obra. Na maioria das vezes, esses sócios acabam sendo uma TV, algum grupo de comunicação ou até mesmo uma distribuidora. Já sobre as dificuldades de produção, direitos autorais, distribuição etc, cada país tem suas particularidades em função de seus mercados”, explica Andrade.

No Brasil, a questão dos direitos autorais é uma pedra no sapato de quem se arrisca nesse universo. Os direitos das músicas e das imagens de arquivo são o maior custo desse tipo de projeto, como explica André Saddy, gerente de conteúdo e marketing do Canal Brasil. “É justo que se cobre, claro. O problema é que, infelizmente, as editoras não fazem distinção entre filmes que trabalham com orçamentos diferentes. Ou seja, cobra-se o mesmo preço tanto para um documentário de R$ 300 mil como para uma ficção de R$ 5 milhões.”

O Canal Brasil produziu “Lóki” e já coproduziu mais de 15 documentários musicais, entre eles “Dzi Croquettes”, “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto”, “Olho Nu”, “Jards” e “Waldick – Sempre no Meu Coração”. E fechou neste ano uma parceria com o festival In-Edit para exibir uma programação especial que contou com 13 documentários musicais. Segundo Saddy, isso é resultado do crescimento da produção de filmes e do interesse por esse gênero no país. “Não medimos separadamente a audiência desse gênero de filmes, mas a própria repercussão de títulos como ‘Vinícius’, ‘Lóki’ e ‘Simonal’, só para citar três exemplos, reflete o interesse do público. Seja nos cinemas, na TV e mais recentemente nas plataformas de VOD”, conta.

Quanto vale o show? – Para Claudio Manoel, diretor de “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei”, a compra de direitos musicais é mais “normal”. “Negocia-se, barganha-se e pronto. Pode ser demorado e caro, mas a coisa é mais clara”, diz. A complicação mesmo está no direito de imagem, que foi o cerne da questão no recente debate das biografias não-autorizadas. “Em outros países a imagem registrada em alguma mídia pertence ao produtor (pressupondo que elas foram consensualmente obtidas), aqui pertence ao ‘registrado’ e seus herdeiros. Isso abre campo para negociações (e extorsões) intermináveis.”

Ele conta que o número de Simonal com a cantora Sarah Vaughan, uma das cenas do filme, foi a conversa mais fácil: obedecendo a legislação norte-americana, pagou-se a quem tinha a propriedade da imagem e pronto. Em contraposição, foi preciso tirar um take da mesma sequência, que mostrava a orquestra que tocou na época, porque teria que procurar cada músico – sem ter nenhum registro de quem eram – para conseguir a liberação do uso da imagem de cada um. “Se nossa lei fosse a que valesse no mundo, Michael Moore teria que pedir autorização ao Bush para ridicularizá-lo em seu documentário”, compara.

O músico Danilo Moraes viu-se do outro lado do “balcão” ao dirigir o filme “Premê, Quase Lindo”, que conta a história da banda paulistana Premeditando o Breque e traz 40 músicas. Experiente no lançamento de discos, ele lembra que já existe uma forma de se lançar um CD independente com canções de compositores conhecidos sem necessariamente pagar o “advanced”, que consiste em pagar todo o valor que aquela gravação iria arrecadar em direitos autorais antes de fabricar o disco. “No Brasil a lei parte do pressuposto que você é culpado até que se prove o contrário. Com os direitos autorais, pressupõe-se que o intérprete não vai pagar, então a editora (empresa que responde juridicamente pelas composições) cobra o ‘advanced’ para não ter que se preocupar depois vendo se o intérprete pagou ou não. O correto seria o intérprete pagar sobre o que ele lucrou, mas é muito complicado organizar tudo isso, separar 10 reais aqui, seis reais ali, para ir pagando o direito autoral”, explica.

O valor do “advanced” muitas vezes inviabiliza o lançamento de um disco. Além disso, as editoras cobram valores aleatórios, não existe uma tabela única. Ainda assim, no mercado de música independente existem saídas alternativas. Já no mercado do documentário musical isso ainda não é muito difundido. “Muitas vezes o autor das músicas nem sequer é consultado e a obra dele deixa de ir para um disco ou filme que ele gostaria que fosse, porque a editora barra. Acho que as editoras musicais ainda funcionam no esquema antigo das gravadoras, cobrando uma fortuna de ‘advanced’ e sem querer negociar”, diz Moraes. A saída, para ele, seria existir uma tabela acessível que considerasse o tamanho da produção (independente, com patrocínio ou com gravadora) para poder circular determinadas obras, que muitas vezes acabam na gaveta.

Ricardo Calil teve sorte nos dois documentários musicais que dirigiu. Em “Uma Noite em 67”, por uma questão editorial, foram utilizadas apenas seis canções finalistas do 3º Festival da Música Popular Brasileira da TV Record. Além disso, a própria emissora entrou como coprodutora do filme e não cobrou pelos direitos de imagem. “A gente foi na Record para tentar entender se conseguiria um preço razoável pelas imagens. Mas nunca seria muito razoável, porque eram muitas imagem. A sorte foi que eles disseram: ao invés da gente cobrar, a gente cede as imagens e entra como coprodutor. Isso foi um facilitador gigantesco. Não sei se a gente conseguiria fazer o filme se tivesse que pagar minuto por minuto de arquivo. Teria que fazer um filme diferente”, conta Calil. Já no caso de “Eu Sou Carlos Imperial”, que está sendo exibido no In-Edit, Calil e Renato Terra tiveram o apoio da família do produtor. Como ele assinava a autoria da maioria das músicas que lançava e era o produtor e diretor de todos os seus filmes, não houve problema em buscar liberação de uso. Além disso, segundo Calil, a produção do documentário foi modesta.

A arte dos grandes personagens – Documentários musicais são, em geral, os documentários mais bem-sucedidos no Brasil. Mas ninguém vê isso como um filão, segundo Calil. “Ninguém diz: ‘vou fazer um documentário musical porque aí vai dar certo’. Não vejo como uma questão de negócio, de mercado, porque naturalmente ninguém vai ficar rico fazendo documentário. Mas a música brasileira é tão rica que, se você faz um documentário musical, as chances de encontrar um público maior no Brasil aumentam bastante.”

Mas só a música é suficiente para render um bom filme? Para o jornalista e produtor musical Marcus Preto, assim como a literatura em prosa, o cinema é a arte dos grandes personagens e das grandes histórias. Por isso, os melhores documentários musicais não são, necessariamente, os filmes sobre os melhores músicos. Mas sim os filmes sobre os melhores personagens, sobre as vidas mais incomuns. “Por isso também há grandes filmes sobre bandas irrelevantes. Por isso um músico mequetrefe como o Carlos Imperial pôde render um filme superior a um grande músico como o Lenine. E, veja bem, isso não diminui nada a dimensão artística do Lenine. Só prova que a vida do Imperial foi mais espetacular, mais melodramática, mais cinematográfica. No cinema, a vida tem que parecer ficção. Ou é melhor voltar pra casa e ouvir o disco em vez de ver o filme”.

Ricardo Calil concorda: “Você pode pegar um grande músico, mas se ele tem uma vida pequena-burguesa, apesar da grande música, não necessariamente vai dar um grande documentário. Por outro lado, você pode pegar um músico menor, que tenha uma trajetória tumultuada, dramática… vai ficar envolvente. Então não necessariamente é só a boa música que faz um bom documentário musical. Tem que ter um grande personagem e bons conflitos”, ensina.

Ter a sorte de encontrar um documentário sobre grandes músicos que também são grandes personagens, diz Preto, é sonho. Elizabete Martins Campos foi atrás da sua grande personagem, Elza Soares. “My Name is Now” é um filme que conta a história da cantora que se tornou um ícone da música brasileira. “Elza é uma personagem perfeita para o cinema, porque traz impregnada em si fortes elementos não somente musicais, mas signos que refletem temáticas que interessam-me tratar, como a valorização da mulher, a potencialização da criatividade brasileira, a luta contra o racismo”, conta a diretora. O filme mergulha no universo de uma personagem que é visceral e que interpreta de forma visceral. Assim, analisa Elizabete, não é um filme sobre a vida de Elza Soares, é um filme sobre os brasileiros.

“Um bom documentário musical é aquele que conta bem uma história, que é capaz de seduzir o espectador e transportar-lhe para a realidade vivida no filme”, diz Marcelo Andrade. Em seguida, segundo ele, está a relevância do filme (histórica, biográfica, musical, social), a riqueza de informação (arquivo de imagens, depoimentos, material inédito) e os aspectos cinematográficos, como a linguagem (originalidade), fotografia e roteiro. Além disso, há a questão da “universalidade” do filme. “Histórias, personagens e entornos muito específicos acabam influenciando na decisão da escolha do título, e às vezes fica difícil transpor certas realidades para plateias que desconhecem o background do que está sendo contado. Isso acaba prejudicando o entendimento do espectador, que carece de informação para apreciar o filme”, explica.

O documentário musical, para Calil, deve ter os mesmos critérios que qualquer outro filme. “Com a vantagem de já vir, em geral, com uma boa trilha sonora”, ressalta. Deve ter bons personagens e bons narradores, que saibam contar bem essas histórias. Deve ter drama e conflito. Ainda que tudo isso possa dificultar o processo de produção.

Claudio Manoel bancou 99% dos custos de filmagem e edição do filme sobre Wilson Simonal, personagem controverso e com uma história bastante polêmica, depois de quase cinco anos buscando patrocínio. Apenas um pequeno banco de investimentos, presidido por um fã do cantor, deu R$ 15 mil, com a condição de manter seu nome em sigilo. No final, um parceiro-investidor privado pagou os custos de finalização – em troca de cláusula de prioridade, ou seja, recebendo primeiro a receita do filme até cobrir o valor investido – a RioFilme apoiou nos custos de lançamento e divulgação e a Globo Filmes entrou com mídia.

Elizabete acredita que, para fazer um filme, é melhor nem pensar sobre todas as dificuldades. “Encarei o projeto como um desafio, uma luta perseverante em busca de soluções, principalmente diante de tamanha responsabilidade de tratar um tema tão complexo, importante, rico e sério, como a vida e a arte de uma cantora, compositora e atriz como Elza Soares”, afirma. Com relação a direitos autorais, ela diz que poderia escrever um livro. No entanto, prefere falar da nova fase do projeto, que é a busca de novos parceiros para que as mais de 50 horas filmadas com Elza possam ter circulação e chegar ao grande público. A ideia é envolver pessoas físicas na etapa de lançamento do filme, com dedução do imposto de renda para quem apoiar financeiramente.

Outras grandes narrativas, acontecimentos e casos existem e poderiam gerar produtos e conteúdos de qualidade, indica Claudio Manoel, que não descarta a ideia de novas incursões no cinema documental. “O que me inibia a tirar da gaveta alguns temas e ideias era, justamente, a necessidade de ter que buscar autorizações infindáveis para contar bons causos. Agora, com a esmagadora decisão do Supremo Tribunal Federal, a favor da liberdade de expressão, da pesquisa e da preservação da memória e contra o atraso e a mesquinharia de milionários e/ou poderosos, fico mais animado. Quem sabe?”.

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